III. A Subjetividade Social da Família

CAPÍTULO V

A FAMÍLIA

CÉLULA VITAL DA SOCIEDADE

a) O amor e a formação de uma comunidade de pessoas

221 A família propõe-se como espaço daquela comunhão, tão necessário em uma comunidade cada vez mais individualista, no qual fazer crescer uma autêntica comunidade de pessoas [490] , graças ao incessante dinamismo do amor, que é a dimensão fundamental da experiência humana e que tem precisamente na família um lugar privilegiado para manifestar-se: «O amor faz com que o homem se realize através do dom sincero de si: amar significa dar e receber aquilo que não se pode comprar nem vender, mas apenas livre e reciprocamente oferecer» [491] .

Graças ao amor, realidade essencial para definir o matrimônio e a família, toda pessoa, homem e mulher, é reconhecida, acolhida e respeitada na sua dignidade. Do amor nascem relações vividas sob o signo da gratuidade, a qual «respeitando e favorecendo em todos e em cada um a dignidade pessoal como único título de valor, se torna acolhimento cordial, encontro e diálogo, disponibilidade desinteressada, serviço generoso, solidariedade profunda» [492] . A existência de famílias que vivem em tal espírito põem a nu as carências e as contradições de uma sociedade orientada preponderantemente, quando não exclusivamente, por critérios de eficiência e de funcionalidade. A família, que vive construindo todos os dias uma rede de relações interpessoais, internas e externas, põe-se por sua vez como «a primeira e insubstituível escola de sociabilidade, exemplo e estímulo para as mais amplas relações comunitárias na mira do respeito, da justiça, do diálogo, do amor» [493] .

222 O amor se expressa também mediante uma pressurosa atenção para com os anciães que vivem na família: a sua presença pode assumir um grande valor. Eles são o exemplo de conexão entre as gerações, uma riqueza para o bem-estar da família e de toda a sociedade: «Não só podem dar testemunho de que existem aspectos da vida, como os valores humanos e culturais, morais e sociais, que não se medem em termos econômicos e funcionais, mas oferecer também o seu contributo eficaz no âmbito do trabalho e no da responsabilidade. Trata-se, por fim, não só de fazer algo pelos idosos, mas de aceitar também estas pessoas como colaboradores responsáveis, com modalidades que o tornem realmente possível, como agentes de projetos partilhados, em fase de programação, de diálogo ou de realização» [494] . Como diz a Sagrada Escritura, as pessoas «na velhice ainda darão frutos» (Sal 92, 15). Os anciães constituem uma importante escola de vida, capaz de transmitir valores e tradições e de favorecer o crescimento dos mais jovens, os quais desse modo aprendem a buscar não somente o próprio bem, mas também o de outrem. Se os anciães se encontram em uma situação de sofrimento e dependência, necessitam não só de cuidados médicos e de uma assistência apropriada, mas sobretudo de ser tratados com amor.

223 O ser humano é feito para amar e sem amor não pode viver. Quando se manifesta no dom total de duas pessoas na sua complementaridade, o amor não pode ser reduzido às emoções e aos sentimentos, nem tampouco à sua mera expressão sexual. Uma sociedade que tende cada vez mais a relativizar e a banalizar a experiência do amor e da sexualidade, exalta os aspectos efêmeros da vida e obscurece os seus valores fundamentais: torna-se cada vez mais urgente anunciar e testemunhar a verdade do amor e da sexualidade conjugal só existe onde se realiza um dom pleno e total das pessoas com as características da unidade e da fidelidade [495] . Tal verdade, fonte de alegria, de esperança e de vida, permanece impenetrável e inatingível enquanto se estiver fechado no relativismo e no ceticismo.

224 Em face das teorias que consideram a identidade de gênero somente o produto cultural e social derivante da interação entre a comunidade e o indivíduo, prescindindo da identidade sexual pessoal e sem referência alguma ao verdadeiro significado da sexualidade, a Igreja não se cansará de reafirmar o próprio ensinamento: «Cabe a cada um, homem e mulher, reconhecer e aceitar sua identidade sexual. A diferença e a complementaridade físicas, morais e espirituais são orientadas para os bens do casamento e para o desabrochar da vida familiar. A harmonia do casal e da sociedade depende, em parte, da maneira como se vivem entre os sexos a complementaridade, a necessidade e o apoio mútuos» [496] . Esta é uma perspectiva que faz considerar imprescindível a conformação do direito positivo com a lei natural, segundo a qual a identidade sexual é indisponível, porque é a condição objetiva para formar um casal no matrimônio.

225 A natureza do amor conjugal exige a estabilidade da relação matrimonial e a sua indissolubilidade. A falta destes requisitos prejudica a relação de amor exclusivo e total próprio do vínculo matrimonial, com graves sofrimentos para os filhos, com reflexos dolorosos também no tecido social.

A estabilidade e a indissolubilidade da união matrimonial não devem ser confiadas exclusivamente à intenção e ao empenho de cada uma das pessoas envolvidas: a responsabilidade da tutela e da promoção da família como instituição natural fundamental, precisamente em consideração dos seus aspectos vitais e irrenunciáveis, compete à sociedade toda. A necessidade de conferir um caráter institucional ao matrimônio, fundando-o em um ato público, social e juridicamente reconhecido, deriva de exigências basilares de natureza social.

A introdução do divórcio nas legislações civis, pelo contrário tem alimentado uma visão relativista do laço conjugal e se manifestou amplamente como uma verdadeira «chaga social» [497] . Os casais que conservam e desenvolvem o bem da indissolubilidade «cumprem … de um modo humilde e corajoso, o dever que lhes foi confiado de ser no mundo um “sinal” — pequeno e precioso sinal, submetido também às vezes à tentação, mas sempre renovado — da fidelidade infatigável com que Deus e Jesus Cristo amam todos os homens e cada homem» [498] .

226 A Igreja não abandona a si mesmos aqueles que, após um divórcio, tornaram a se casar. A Igreja reza por eles, anima-os nas dificuldades de ordem espiritual que encontram e os sustém na fé e na esperança. Por parte dessas pessoas, enquanto batizadas, podem, antes devem, participar da vida eclesial: são exortadas a escutar a Palavra de Deus, a freqüentar o sacrifício da Missa, a perseverar na oração, a dar incremento às obras de caridade e às iniciativas da comunidade a favor da justiça e da paz, a educar os filhos na fé, a cultivar o espírito e as obras de penitência para assim implorar, dia após dia, a graça de Deus.

A reconciliação no sacramento da penitência — que abriria a estrada ao sacramento eucarístico — pode ser concedida somente aos que, arrependidos, estão sinceramente dispostos a uma forma de vida não mais em contradição com a indissolubilidade do matrimônio [499] .

Assim agindo, a Igreja professa a própria fidelidade a Cristo e à Sua verdade; ao mesmo tempo se comporta com ânimo materno em relação a estes filhos seus, especialmente para com aqueles que, sem sua culpa, foram abandonados pelo legítimo cônjuge. Com firme confiança ela crê que, mesmo aqueles que se afastaram do mandamento do Senhor, e em tal estado ainda vivem, poderão obter de Deus a graça da conversão e da salvação, se tiverem perseverado na oração, na penitência e na caridade [500] .

227 As uniões de fato, cujo número tem aumentado progressivamente, baseiam-se em uma falsa concepção da liberdade de opção dos indivíduos [501] e em uma concepção de todo privatista do matrimônio e da família. O matrimônio, de fato, não é um simples pacto de convivência, mas uma relação com uma dimensão social única em relação a todas as outras, enquanto a família, provendo à procriação e à educação dos filhos, se configura como instrumento primário para o crescimento integral de cada pessoa e para a sua positiva inserção na vida social.

A eventual equiparação legislativa entre família e «uniões de fato» traduzir-se-ia em um descrédito do modelo de família, que não se pode realizar em uma precária relação entre pessoas [502] , mas somente em uma união permanente originada por um matrimônio, isto é, pelo pacto entre um homem e uma mulher, fundado sobre uma escolha recíproca e livre que implica a plena comunhão conjugal orientada para a procriação.

228 Uma problemática particular ligada às uniões de fato é a concernente à demanda de reconhecimento jurídico das uniões homossexuais, cada vez mais objeto de debate público. Somente uma antropologia correspondente à plena verdade do homem pode dar uma resposta apropriada ao problema, que apresenta diversos aspectos, quer no plano social quer no eclesial [503] . À luz de tal antropologia revela-se «como é incongruente a pretensão de atribuir uma realidade “conjugal” à união entre pessoas do mesmo sexo. A ela opõe-se, antes de tudo, a impossibilidade objetiva de fazer frutificar o conúbio mediante a transmissão da vida, segundo com o projeto inscrito por Deus na própria estrutura do ser humano. Serve de obstáculo, além disso, a ausência dos pressupostos para aquela complementaridade interpessoal que o Criador quis, tanto no plano físico-biológico quanto no plano eminentemente psicológico, entre o homem e a mulher. É só na união entre duas pessoas sexualmente diferentes que se pode realizar o aperfeiçoamento do indivíduo, numa síntese de unidade e de mútua complementação psicofísica» [504] .

A pessoa homossexual deve ser plenamente respeitada na sua dignidade humana [505] e encorajada a seguir o plano de Deus com um empenho particular no exercício da castidade [506] . O respeito que se lhes deve não significa legitimação de comportamentos não conformes com a lei moral, nem tampouco o reconhecimento de um direito ao matrimônio entre pessoas do mesmo sexo, com a conseqüente equiparação de tal união à família [507] : « Se, do ponto de vista legal, o matrimônio entre duas pessoas de sexo diferente for considerado apenas como um dos matrimônios possíveis, o conceito de matrimônio sofrerá uma alteração radical, com grave prejuízo para o bem comum. Colocando a união homossexual num plano jurídico análogo ao do matrimônio ou da família, o Estado comporta-se de modo arbitrário e entra em contradição com os próprios deveres» [508] .

229 A solidez do núcleo familiar é um recurso determinante para a qualidade da convivência social, por isso a comunidade civil não pode ficar indiferente de fronte às tendências desagregadoras que minam na base as suas pilastras fundamentais. Se uma legislação pode por vezes tolerar comportamentos moralmente inaceitáveis [509] não deve jamais debilitar o reconhecimento do matrimônio monogâmico indissolúvel qual única forma autêntica da família. É portanto necessário que se atue «também junto das autoridades públicas, para que, resistindo a estas tendências desagregadoras da própria sociedade e prejudiciais à dignidade, segurança e bem-estar dos cidadãos, a opinião pública não seja induzida a menosprezar a importância institucional do matrimônio e da família» [510] .

É tarefa da comunidade cristã e de todos aqueles que tomam a peito o bem da sociedade reafirmar que «a família constitui, mais do que uma unidade jurídica, social e econômica, uma comunidade de amor e de solidariedade, insubstituível para o ensino e a transmissão dos valores culturais, éticos, sociais, espirituais e religiosos, essenciais para o desenvolvimento e o bem-estar dos próprios membros e da sociedade» [511] .

b) A família é o santuário da vida

230 O amor conjugal é por sua natureza aberto ao acolhimento da vida [512] . Na tarefa procriadora revela-se de modo eminente a dignidade do ser humano, chamado a ser interprete da bondade e da fecundidade que provêm de Deus: «A paternidade e a maternidade humana, mesmo sendo biologicamente semelhantes às de outros seres da natureza, têm em si mesmas de modo essencial e exclusivo uma “semelhança com Deus, sobre a qual se funda a família, concebida como comunidade de vida humana, como comunidade de pessoas unidas no amor (communio personarum [513] .

A procriação expressa a subjetividade social da família e dá início a um dinamismo de amor e de solidariedade entre as gerações que está na base da sociedade. É preciso redescobrir o valor social de partícula do bem comum ínsito em cada novo ser humano: cada criança «faz de si um dom aos irmãos, às irmãs, aos pais, à família inteira. A sua vida torna-se dom para os próprios doadores da vida, que não poderão deixar de sentir a presença do filho, a sua participação na existência deles, o seu contributo para o bem comum deles e da família» [514] .

231 A família fundada no matrimônio é deveras o santuário da vida, «o lugar onde a vida, dom de Deus, pode ser convenientemente acolhida e protegida contra os múltiplos ataques a que está exposta, e pode desenvolver-se segundo as exigências de um crescimento humano autêntico» [515] . Determinante e insubstituível é e deve ser considerado o seu papel para promover e construir a cultura da vida [516] contra a difusão de uma « “anticivilização”destruidora, como se confirma hoje por tantas tendências e situações de fato » [517] .

As famílias cristãs, em força do sacramento recebido, têm a missão peculiar de ser testemunhas e anunciadoras do Evangelho da vida. É um empenho que assume na sociedade o valor de verdadeira e corajosa profecia. É por este motivo que «servir o Evangelho da vida implica que as famílias, nomeadamente tomando parte em apropriadas associações, se empenhem por que as leis e as instituições do Estado não lesem de modo algum o direito à vida, desde a sua concepção até à morte natural, mas o defendam e promovam» [518] .

232 A família contribui de modo eminente para o bem social através da paternidade e da maternidade responsáveis, formas peculiares da especial participação dos cônjuges na obra criadora de Deus [519] . O ônus de uma semelhante responsabilidade não pode ser invocada para justificar fechamentos egoísticos, mas deve guiar as escolhas dos cônjuges para um generoso acolhimento da vida: «Em relação às condições físicas, econômicas, psicológicas e sociais, a paternidade responsável exerce-se tanto com a deliberação ponderada e generosa de fazer crescer uma família numerosa, como com a decisão, tomada por motivos graves e com respeito pela lei moral, de evitar temporariamente, ou mesmo por tempo indeterminado, um novo nascimento» [520] . As motivações que devem guiar os esposos no exercício responsável da paternidade e da maternidade derivam do pleno reconhecimento dos próprios deveres para com Deus, para consigo próprios, para com a família e para com a sociedade, numa justa hierarquia de valores.

233 Quanto aos «meios» para atuar a procriação responsável, há que se excluir como moralmente ilícitos tanto a esterilização como o aborto [521] . Este último, em particular, é um abominável delito e constitui sempre uma desordem moral particularmente grave [522] ; longe de ser um direito, é antes um triste fenômeno que contribui gravemente para a difusão de uma mentalidade contra a vida, ameaçando perigosamente uma convivência social justa e democrática [523] .

É igualmente de excluir o recurso aos meios contraceptivos nas suas diversas formas [524] tal rejeição tem o seu fundamento numa concepção correta e integral da pessoa e da sexualidade humana [525] e tem o valor de uma instância moral em defesa da verdadeira humanização dos povos [526] . As mesmas razões de ordem antropológica justificam, pelo contrário, como lícito o recurso à abstinência periódica nos períodos de fertilidade feminina [527] . Rejeitar a contracepção e recorrer aos métodos naturais de regulação da fertilidade significa modelar as relações interpessoais entre os cônjuges com base no respeito recíproco e no total acolhimento, com reflexos positivos também para a realização de uma ordem social mais humana.

234 O juízo acerca do intervalo entre os nascimentos e o número dos filhos a procriar compete somente aos esposos. Este é um seu direito inalienável, a ser exercitado diante de Deus, considerando os deveres para consigo mesmos, para com os filhos já nascidos, a família e a sociedade [528] . A intervenção dos poderes públicos, no âmbito das suas competências, para a difusão de uma informação apropriada e a adoção de medidas oportunas em campo demográfico, deve ser efetuada no respeito das pessoas e da liberdade dos casais: ninguém os pode substituir nas suas opções [529] ; tampouco o podem fazer as várias organizações que atuam neste setor.

São moralmente condenáveis como atentados à dignidade da pessoa e da família, todos os programas de ajuda econômica destinados a financiar campanhas de esterilização e de contracepção ou subordinadas à aceitação de tais campanhas. A solução das questões conexas ao crescimento demográfico deve ser antes perseguida no simultâneo respeito tanto da moral sexual e como da moral social, promovendo uma maior justiça e autêntica solidariedade para dar por todo lado dignidade à vida, a começar das condições econômicas, sociais e culturais.

235 O desejo de maternidade ou paternidade não funda algum « direito ao filho », ao passo que, pelo contrário, são evidentes os direitos do nascituro, a quem devem ser garantidas as condições ótimas de existência, através da estabilidade da família fundada no matrimônio, a complementaridade das duas figuras, paterna e materna [530] . O rápido progresso da pesquisa e das aplicações técnicas na esfera da reprodução põe novas e delicadas questões que chamam em causa a sociedade e as normas que regulam a convivência humana.

É preciso reafirmar que não são eticamente aceitáveis todas as técnicas reprodutivas — quais a doação de esperma ou de ovócitos; a maternidade substitutiva; a fecundação artificial heteróloga — que prevêem o recurso ao útero ou a gametas de pessoas estranhas ao casal conjugal, lesando o direito do filho a nascer de um pai e de uma mãe que sejam tais tanto do ponto de vista biológico como jurídico, ou dissociam o ato unitivo do ato procriador recorrendo a técnicas de laboratório, quais a inseminação e a fecundação artificial homóloga, de modo que o filho aparece mais como o resultado de um ato técnico do que como o fruto natural do ato humano de plena e total doação dos cônjuges [531] . Evitar o recurso às diversas formas da chamada procriação assistida, substitutiva do ato conjugal, significa respeitar — seja nos pais seja nos filhos que eles pretendem gerar — a dignidade integral da pessoa humana [532] . São lícitos, pelo contrário, os meios que se configuram como ajuda ao ato conjugal ou ao conseguimento dos seus efeitos [533] .

236 Uma questão de particular relevância social e cultural, pelas múltiplas e graves implicações morais que apresenta, é a referente à clonagem humana, termo que, de per si, em sentido genérico, significa reprodução de uma entidade biológica geneticamente idêntica à de origem. Ela tem assumido, no pensamento e na praxe experimental, diversos significados que supõem, por sua vez, procedimentos diversos do ponto de vista das modalidades técnicas de realização, bem como finalidades diferentes. Pode significar a simples replicação em laboratório de células ou de porções de ADN. Mas especificamente hoje se entende a reprodução de indivíduos, no estado embrional com modalidades diferentes da fecundação natural e de modo que sejam geneticamente idênticos ao indivíduo de quem têm origem. Este tipo de clonagem pode ter a finalidade reprodutiva de embriões humanos ou a assim chamada terapêutica, tendente a utilizar tais embriões para fins de pesquisa científica ou mais especificamente para a reprodução de células tronco.

Do ponto de vista ético a simples replicação de células normais ou de porções de ADN não apresenta problemas éticos particulares. Bem distinto é o juízo do Magistério sobre a clonagem propriamente dita. É contrária à dignidade da procriação humana porque se realiza em ausência total do ato de amor pessoal entre os esposos, sendo uma reprodução agâmica e assexuada [534] . Em segundo lugar este tipo de reprodução representa uma forma de domínio total sobre o indivíduo reproduzido por parte de quem o reproduz [535] . O fato de que seja realizada a clonagem para reproduzir embriões dos quais tirar células que possam ser usadas para a terapia não atenua a gravidade moral, mesmo porque para tirar tais células o embrião deve ser primeiro produzido e depois suprimido [536] .

237 Os pais, como ministros da vida, não devem nunca olvidar que a dimensão espiritual da procriação merece uma consideração superior à reservada a qualquer outro aspecto: «A paternidade e a maternidade representam uma tarefa de natureza conjuntamente física e espiritual; através delas, passa realmente a genealogia da pessoa, que tem o seu princípio eterno em Deus e a Ele deve conduzir» [537] . Acolhendo a vida humana na unidade das suas dimensões, físicas e espirituais, as famílias contribuem para a «comunhão das gerações» continuidade da espécie e dão, deste modo, um contributo essencial e insubstituível para o progresso da sociedade. Por isto, «a família tem o direito à assistência da sociedade no que se refere aos seus deveres na procriação e educação dos filhos. Os casais casados com família numerosa têm direito a uma ajuda adequada e não devem ser discriminados» [538] .

c) A tarefa educativa

238. Com a obra educativa, a família forma o homem para a plenitude da sua dignidade pessoal, segundo todas as suas dimensões, inclusive a social. A família constitui, efetivamente, «una comunidade de amor e de solidariedade, insubstituível para o ensino e a transmissão dos valores culturais, éticos, sociais, espirituais e religiosos, essenciais para o desenvolvimento e bem-estar de seus próprios membros e da sociedade» [539] . Exercendo a sua missão educativa, a família contribui para o bem comum e constitui a primeira escola das virtudes sociais, de que todas as sociedades necessitam [540] . As pessoas são ajudadas, em família, a crescer na liberdade e na responsabilidade, requisitos indispensáveis para se assumir qualquer tarefa na sociedade. Com a educação, ademais, são comunicados, para serem assimilados e feitos próprios por cada um, alguns valores fundamentais, necessários para ser cidadãos livres, honestos e responsáveis [541] .

239 A família tem um papel de todo original e insubstituível na educação dos filhos [542] . O amor paterno e materno, colocando-se ao serviço dos filhos para extrair deles («e-ducere») o melhor de si, tem a sua plena realização precisamente na tarefa educativa: «o amor dos pais de fonte torna-se alma e, portanto, norma, que inspira e guia toda a ação educativa concreta, enriquecendo-a com aqueles valores de docilidade, constância, bondade, serviço, desinteresse, espírito de sacrifício, que são o fruto mais precioso do amor» [543] .

O direito-dever dos pais de educar a prole se qualifica «como essencial, ligado como está à transmissão da vida humana; como original e primário, em relação ao dever de educar dos outros, pela unicidade da relação de amor que subsiste entre pais e filhos; como insubstituível e inalienável, e portanto, não delegável totalmente a outros ou por outros usurpável» [544] . Os pais têm o direito-dever de oferecer uma educação religiosa e uma formação moral aos seus filhos [545] : direito que não pode ser cancelado pelo Estado, mas deve ser respeitado e promovido; dever primário, que a família não pode descurar nem delegar.

240 Os pais são os primeiros, mas não os únicos educadores de seus filhos. Compete-lhes, pois, a eles exercer com sentido de responsabilidade a sua obra educativa em colaboração estreita e vigilante com os organismos civis e eclesiais: «a dimensão comunitária, civil e eclesial do homem exige e conduz a uma obra mais ampla e articulada, que seja o fruto da colaboração ordenada das diversas forças educativas. Estas forças são todas elas necessárias, mesmo que cada uma possa e deva intervir com a sua competência e o seu contributo próprio» [546] . Os pais têm o direito de escolher os instrumentos formativos correspondentes às próprias convicções e de buscar os meios que possam ajudá-los da melhor maneira na sua tarefa de educadores, mesmo no âmbito espiritual e religioso. As autoridades públicas têm o dever de garantir tal direito e de assegurar as condições concretas que consentem o seu exercício [547] . Neste contexto, se coloca antes de mais o tema da colaboração entre a família e a instituição escolar.

241. Os pais têm o direito de fundar e manter instituições educativas. As autoridades públicas devem assegurar que «se distribuam as subvenções públicas de modo tal que os pais sejam verdadeiramente livres para exercer o seu direito, sem ter de suportar ônus injustos. Os pais não devem ser constrangidos a fazer, nem direta nem indiretamente, despesas suplementares que impeçam ou limitem injustamente o exercício desta liberdade» [548] . Deve-se, portanto, considerar uma injustiça negar a subvenção econômica pública às escolas não estatais que dela necessitem e que prestam um serviço à sociedade civil: «Quando o Estado reivindica para si o monopólio escolar, ultrapassa os seus direitos e ofende a justiça… o Estado não pode, sem cometer injustiça, limitar-se a tolerar as escolas ditas privadas. Estas prestam um serviço público e, de conseqüência, têm o direito de ser ajudadas economicamente» [549] .

242. A família tem a responsabilidade de oferecer uma educação integral. Toda a verdadeira educação, efetivamente, «visa o aprimoramento da pessoa humana em relação a seu fim último e o bem das sociedades de que o homem é membro, e em cujas tarefas, uma vez adulto, terá que participar» [550] . A integralidade fica assegurada quando os filhos — com o testemunho de vida e com a palavra — são educados para o diálogo, para o encontro, para a sociabilidade, para a legalidade, para a solidariedade e para a paz, mediante o cultivo das virtudes fundamentais da justiça e da caridade [551] .

Na educação dos filhos, o papel paterno e o materno são igualmente necessários [552] . Os pais devem, pois, agir conjuntamente. A autoridade deve ser por eles exercida com respeito e delicadeza, mas também com firmeza e vigor: deve ser credível, coerente, sábia e sempre orientada ao bem integral dos filhos.

243 Os pais têm ainda uma particular responsabilidade na esfera da educação sexual. É de fundamental importância, para um crescimento equilibrado, que os filhos aprendam de modo ordenado e progressivo o significado da sexualidade e aprendam a apreciar os valores humanos e morais relativos a ela: «Pelos laços estreitos que ligam a dimensão sexual da pessoa e os seus valores éticos, o dever educativo deve conduzir os filhos a conhecer e a estimar as normas morais como necessária e preciosa garantia para um crescimento pessoal responsável na sexualidade humana» [553] . Os pais têm a obrigação de verificar o modo como se realiza a a educação sexual nas instituições educativas, a fim de garantir que um tema tão importante e delicado seja abordado de modo apropriado.

d) A dignidade e os direitos das crianças

244 A doutrina social da Igreja indica constantemente a exigência de respeitar a dignidade das crianças: «Na família, comunidade de pessoas, deve reservar-se uma especialíssima atenção à criança, desenvolvendo uma estima profunda pela sua dignidade pessoal como também um grande respeito e um generoso serviço pelos seus direitos. Isto vale para cada criança, mas adquire uma urgência singular quanto mais pequena e desprovida, doente, sofredora ou diminuída for a criança» [554] .

Os direitos das crianças devem ser protegidos pelos ordenamentos jurídicos. É necessário, antes de tudo, o reconhecimento público em todos os países do valor social da infância: «Nenhum país do mundo, nenhum sistema político pode pensar ao próprio porvir diversamente, senão através da imagem destas novas gerações, que hão de assumir de seus progenitores o multíplice patrimônio dos valores, dos deveres e das aspirações da nação à qual pertencem, juntamente com o patrimônio de toda a família humana» [555] . O primeiro direito da criança é o direito «a nascer numa verdadeira família» [556] , um direito cujo respeito sempre foi problemático e que hoje conhece novas formas de violação devidas ao progresso das técnicas genéticas.

245 A situação de uma grande parte das crianças no mundo está longe de ser satisfatória, por falta de condições que favoreçam o seu crescimento integral, apesar da existência de um instrumento jurídico internacional específico para a tutela dos direitos da criança [557] , que empenha quase todos os membros da comunidade internacional. Trata-se de condições ligadas à falta de serviços sanitários, de uma alimentação adequada, de possibilidade de receber um mínimo de formação escolar e de uma casa. Permanecem irresolutos, ademais, alguns problemas gravíssimos: o tráfico de crianças, o trabalho infantil, o fenômeno dos “meninos de rua”, o uso de crianças em conflitos armados, o matrimônio das meninas, o uso de crianças para o comércio de material pornográfico, também através dos mais modernos e sofisticados instrumentos de comunicação social. É indispensável combater, em âmbito nacional e internacional, as gravíssimas ofensas à dignidade dos meninos e das meninas derivadas da exploração sexual, das pessoas dadas à pedofilia e das violências de todo e qualquer tipo, sofridas por estas pessoas humanas mais indefesas [558] . Trata-se de atos gravíssimos e delituosos, que devem ser eficazmente combatidos, com medidas preventivas e penais, através de uma ação enérgica das autoridades.