VIII. A Via da Caridade

CAPÍTULO IV

OS PRINCÍPIOS DA DOUTRINA SOCIAL DA IGREJA

204 Entre as virtudes no seu conjunto e, em particular, entre virtudes, valores sociais e caridade, subsiste um profundo liame, que deve ser cada vez mais acuradamente reconhecido. A caridade, não raro confinada ao âmbito das relações de proximidade, ou limitada aos aspectos somente subjetivos do agir para o outro, deve ser reconsiderada no seu autêntico valor de critério supremo e universal de toda a ética social. Dentre todos os caminhos, mesmo os procurados e percorridos para enfrentar as formas sempre novas da atual questão social, o « mais excelente de todos» (1 Cor 12,31) é a via traçada pela caridade.

205 Os valores da verdade, da justiça, do amor e da liberdade nascem e se desenvolvem do manancial interior da caridade: a convivência humana é ordenada, fecunda de bens e condizente com a dignidade do homem, quando se funda na verdade; realiza-se segundo a justiça, ou seja, no respeito efetivo pelos direitos e no leal cumprimento dos respectivos deveres; é realizada na liberdade que condiz com a dignidade dos homens, levados pela sua mesma natureza racional a assumir a responsabilidade pelo próprio agir; é vivificada pelo amor, que faz sentir como próprias as carências e as exigências alheias e torna sempre mais intensas a comunhão dos valores espirituais e a solicitude pelas necessidades materiais [451] . Estes valores constituem pilastras das quais recebe solidez e consistência o edifício do viver e do agir: são valores que determinam a qualidade de toda a ação e instituição social.

206 A caridade pressupõe e transcende a justiça: esta última «deve ser completada pela caridade» [452] . Se a justiça «é, em si mesma, apta para “servir de árbitro” entre os homens na recíproca repartição justa dos bens materiais, o amor, pelo contrário, e somente o amor (e portanto também o amor benevolente que chamamos “misericórdia”), é capaz de restituir o homem a si próprio» [453] Não se podem regular as relações humanas unicamente com a medida da justiça: «A experiência do passado e do nosso tempo demonstra que a justiça, por si só, não basta e que pode até levar à negação e ao aniquilamento de si própria, se não se permitir àquela força mais profunda, que é o amor plasmar a vida humana nas suas várias dimensões. Foi precisamente a experiência da realidade histórica que levou à formulação do axioma: summum ius, summa iniuria» [454] . A justiça, com efeito, «em toda a gama das relações entre os homens, deve submeter-se, por assim dizer, a uma “correção” notável, por parte daquele amor que, como proclama S. Paulo, “é paciente” e “benigno”, ou por outras palavras, que encerra em si as características do amor misericordioso, tão essenciais para o Evangelho como para o Cristianismo» [455] .

207 Nenhuma legislação, nenhum sistema de regras ou de pactos conseguirá persuadir homens e povos a viver na unidade, na fraternidade e na paz, nenhuma argumentação poderá superar o apelo da caridade. Somente a caridade, na sua qualidade de «forma virtutum» [456] , pode animar e plasmar o agir social no contexto de um mundo cada vez mais complexo. Para que tudo isto aconteça, é necessário que se cuide de mostrar a caridade não só como inspiradora da ação individual, mas também como força capaz de suscitar novas vias para enfrentar os problemas do mundo de hoje e para e renovar profundamente desde o interior das estruturas, organizações sociais, ordenamentos jurídicos. Nesta perspectiva, a caridade se torna caridade social e política: a caridade social nos leva a amar o bem comum [457] e a buscar efetivamente o bem de todas as pessoas, consideradas não só individualmente, mas também na dimensão social que as une.

208 A caridade social e política não se esgota nas relações entre as pessoas, mas se desdobra na rede em que tais relações se inserem, que é precisamente a comunidade social e política, e sobre esta intervém, mirando ao bem possível para a comunidade no seu conjunto. Sob tantos aspectos, o próximo a ser amado se apresenta «em sociedade», de sorte que amá-lo realmente, prover às suas necessidades ou à sua indigência pode significar algo de diferente do bem que se lhes pode querer no plano puramente inter-individual: amá-lo no plano social significa, de acordo com as situações, valer-se das mediações sociais para melhorar sua vida ou remover os fatores sociais que causam a sua indigência. Sem dúvida alguma, é um ato de caridade a obra de misericórdia com que se responde aqui e agora a uma necessidade real e impelente do próximo, mas é um ato de caridade igualmente indispensável o empenho com miras a organizar e estruturar a sociedade de modo que o próximo não se venha a encontrar na miséria, sobretudo quando esta se torna a situação em que se debate um incomensurável número de pessoas e mesmo povos inteiros, situação esta que assume hoje as proporções de uma verdadeira e própria questão social mundial.

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