III. A Destinação Universal dos Bens

CAPÍTULO IV

OS PRINCÍPIOS DA DOUTRINA SOCIAL DA IGREJA

a) Origem e significado

171 Dentre as multíplices implicações do bem comum, assume particular importância o princípio da destinação universal dos bens: «Deus destinou a terra e tudo o que ela contém para o uso de todos os homens e de todos os povos, de sorte que os bens criados devem chegar eqüitativamente às mãos de todos, segundo a regra da justiça, inseparável da caridade» [360] . Este princípio se baseia no fato de que: «a origem primeira de tudo o que é bem é o próprio ato de Deus que criou a terra e o homem, e ao homem deu a terra para que a domine com o seu trabalho e goze dos seus frutos (Cf. Gn 1, 28-29). Deus deu a terra a todo o gênero humano, para que ela sustente todos os seus membros sem excluir nem privilegiar ninguém. Está aqui a raiz da destinação universal dos bens da terra. Esta, pela sua própria fecundidade e capacidade de satisfazer as necessidades do homem, constitui o primeiro dom de Deus para o sustento da vida humana» [361] . A pessoa não pode prescindir dos bens materiais que respondem às suas necessidades primárias e constituem as condições basilares para a sua existência; estes bens lhe são absolutamente indispensáveis para alimentar-se e crescer, para comunicar, para associar-se e para poder conseguir as mais altas finalidades a que é chamada [362] .

172 O princípio da destinação universal dos bens da terra está na base do direito universal ao uso dos bens. Todo o homem deve ter a possibilidade de usufruir do bem-estar necessário para o seu pleno desenvolvimento: o princípio do uso comum dos bens é o «primeiro princípio de toda a ordem ético-social» [363] e «princípio típico da doutrina social cristã» [364] . Por esta razão a Igreja considerou necessário precisar-lhe a natureza e as características. Trata-se, antes de tudo, de um direito natural, inscrito na natureza do homem e não de um direito somente positivo, ligado à contingência histórica; ademais, tal direito é «originário» [365] . É inerente à pessoa singularmente considerada, a cada pessoa, e é prioritário em relação a qualquer intervenção humana sobre os bens, a qualquer regulamentação jurídica dos mesmos, a qualquer sistema e método econômico-social: «Todos os outros direitos, quaisquer que sejam, incluindo os de propriedade e de comércio livre, estão-lhe subordinados [à destinação universal dos bens]: não devem portanto impedir, mas, pelo contrário, facilitar a sua realização; e é um dever social grave e urgente conduzi-los à sua finalidade primeira» [366] .

173 A atuação concreta do princípio da destinação universal dos bens, segundo os diferentes contextos culturais e sociais, implica uma precisa definição dos modos, dos limites, dos objetos. Destinação e uso universal não significam que tudo esteja à disposição de cada um ou de todos, e nem mesmo que a mesma coisa sirva ou pertença a cada um ou a todos. Se é verdade que todos nascem com o direito ao uso dos bens, é igualmente verdadeiro que, para assegurar o seu exercício eqüitativo e ordenado, é necessário que se atue uma regulamentação, fruto de acordos nacionais e internacionais, e um ordenamento jurídico que determine e especifique tal exercício.

174 O princípio da destinação universal dos bens convida a cultivar uma visão da economia inspirada em valores morais que permitam nunca perder de vista nem a origem, nem a finalidade de tais bens, de modo a realizar um mundo eqüitativo e solidário, em que a formação da riqueza possa assumir uma função positiva. A riqueza, com efeito, apresenta esta valência, na multiplicidade das formas que podem exprimi-la como o resultado de um processo produtivo de elaboração técnico-econômica dos recursos disponíveis, naturais e derivados, guiado pela inventiva, pela capacidade concretizar projetos, pelo trabalho dos homens, e empregada como meio útil para promover o bem-estar dos homens e dos povos e para contrastar-lhes a exclusão e exploração.

175 O destinação universal dos bens comporta, portanto, um esforço comum que mira obter para toda pessoa e para todos os povos as condições necessárias ao desenvolvimento integral, de modo que todos possam contribuir para a promoção de um mundo mais humano, «onde cada um possa dar e receber, e onde o progresso de uns não seja mais um obstáculo ao desenvolvimento de outros, nem um pretexto para a sua sujeição» [367] . Este princípio corresponde ao apelo que o Evangelho incessantemente dirige ao homem e às sociedades de todos os tempos, sempre expostos às tentações da avidez da posse, a que o próprio Senhor Jesus quis submeter-Se (Cf. Mc 1,12-13; Mt 4,1-11; Lc 4,1-13) ensinando-nos o caminho para superá-la com a Sua graça.

b) Destinação universal dos bens e propriedade privada

176 Mediante o trabalho, o homem, usando a sua inteligência, consegue dominar a terra e torná-la sua digna morada: «Deste modo, ele apropria-se de uma parte da terra, adquirida precisamente com o trabalho. Está aqui a origem da propriedade individual» [368] . A propriedade privada, bem como as outras formas de domínio privado dos bens, «assegura a cada qual um meio absolutamente necessário para a autonomia pessoal e familiar e deve ser considerada como uma prolongação da liberdade humana […], constitui uma certa condição das liberdades civis, porque estimula ao exercício da sua função e responsabilidade» [369] . A propriedade privada é elemento essencial de uma política econômica autenticamente social e democrática e é garantia de uma reta ordem social. A doutrina social requer que a propriedade dos bens seja eqüitativamente acessível a todos [370] , de modo que todos sejam, ao menos em certa medida, proprietários, e exclui o recurso a formas de «domínio comum e promíscuo» [371] .

177 A tradição cristã nunca reconheceu o direito à propriedade privada como absoluto e intocável: «pelo contrário, sempre o entendeu no contexto mais vasto do direito comum de todos a utilizarem os bens da criação inteira: o direito à propriedade privada está subordinado ao direito ao uso comum, subordinado à destinação universal dos bens» [372] . O princípio da destinação universal dos bens afirma seja o pleno e perene senhorio de Deus sobre toda a realidade, seja a exigência que os bens da criação sejam e permaneçam finalizados e destinados ao desenvolvimento de todo homem e de toda a humanidade [373] . Este princípio, porém, não se opõe ao direito de propriedade [374] , indica antes a necessidade de regulamentá-lo. A propriedade privada, com efeito, quaisquer que sejam as formas concretas dos regimes e das normas jurídicas que lhes digam respeito, é, na sua essência, somente um instrumento para o respeito do princípio da destinação universal dos bens, e portanto, em última análise, não um fim, mas um meio [375] .

178 O ensinamento social da Igreja exorta a reconhecer a função social de qualquer forma de posse privada [376] , com a clara referência às exigências imprescindíveis do bem comum [377] . O homem «que possui legitimamente as coisas materiais não as deve ter só como próprias dele, mas também como comuns, no sentido que elas possam ser úteis não somente a ele mas também aos outros» [378] A destinação universal dos bens comporta vínculos ao seu uso por parte dos legítimos proprietários. Cada pessoa, ao agir, não pode prescindir dos efeitos do uso dos próprios recursos, mas deve atuar de modo a perseguir, ademais da vantagem pessoal e familiar, igualmente o bem comum. Donde decorre o dever dos proprietários de não manter ociosos os bens possuídos e de os destinar à atividade produtiva, também confiando-os a quem tem desejo e capacidade de os levar a produzir.

179 A atual fase histórica, colocando à disposição da sociedade bens novos, de todo desconhecidos até a tempos recentes, impõe uma releitura do princípio da destinação universal dos bens da terra, tornando necessário estendê-lo de sorte que compreenda também os frutos do recente progresso econômico e tecnológico. A propriedade dos novos bens, fruto do conhecimento, da técnica e do saber, torna-se cada vez mais decisiva, pois «a riqueza das nações industrializadas funda-se muito mais sobre este tipo de propriedade, do que sobre a dos recursos naturais» [379] .

Os novos conhecimentos técnicos e científicos devem ser postos ao serviço das necessidades primarias do homem, para que possa acrescer gradualmente o patrimônio comum da humanidade. A plena atuação do princípio da destinação universal dos bens requer, portanto, ações no plano internacional e iniciativas programadas por parte de todos os países: «Torna-se necessário quebrar as barreiras e os monopólios que deixam tantos povos à margem do progresso, e garantir, a todos os indivíduos e nações, as condições basilares que lhes permitam participar no desenvolvimento» [380] .

180 Se no processo de desenvolvimento econômico e social, adquirem notável relevância formas de propriedade desconhecidas no passado, não se podem, todavia, esquecer as tradicionais. A propriedade individual não é a única forma legítima de posse. Reveste também particular importância a antiga forma de propriedade comunitária que, mesmo se presentes nos países economicamente avançados, caracteriza, de modo particular, a estrutura social de numerosos povos indígenasÉ uma forma de propriedade que incide com uma profundidade tal na vida econômica, cultural e política daqueles povos, que chega a constituir um elemento fundamental para a sua sobrevivência e bem-estar. A defesa e a valorização da propriedade comunitária não devem, todavia, excluir a consciência do fato de que também este tipo de propriedade é destinado a evoluir. Se se agisse de modo a garantir-lhe tão-somente a conservação, correr-se-ia o risco de atá-la ao passado e, deste modo, de comprometê-la [381] .

Permanece sempre crucial, sobretudo nos países em via de desenvolvimento ou que saíram de sistemas coletivistas ou de colonização, a distribuição eqüitativa da terra. Nas zonas rurais a possibilidade de aceder à terra mediante a oportunidade oferecida também pelos mercados do trabalho e do crédito é condição necessária para o acesso aos outros bens e serviços; além de constituir um caminho eficaz para a salvaguarda do ambiente, tal possibilidade representa um sistema de segurança social realizável também nos países que têm uma estrutura administrativa frágil [382] .

181 Da propriedade deriva para o sujeito possessor, quer seja um indivíduo, quer seja uma comunidade, uma série de objetivas vantagens: melhores condições de vida, segurança para o futuro, oportunidades de escolha mais amplas. Da propriedade, por outro lado, pode provir também uma série de promessas ilusórias e tentadoras. O homem ou a sociedade que chegam ao ponto de absolutizar o papel da propriedade, acabam por experimentar a mais radical escravidão. Nenhuma posse, com efeito, pode ser considerada indiferente pelo influxo que tem tanto sobre os indivíduos, quanto sobre as instituições: o possessor que incautamente idolatra os seus bens (Cf. Mt 6, 24; 19, 21-26; Lc 16, 13) acaba por ser, mais do que nunca, possuído e escravizado [383] . Somente reconhecendo a sua dependência em relação a Deus Criador e ordenando-os ao bem comum é possível conferir aos bens materiais a função de instrumentos úteis ao crescimento dos homens e dos povos.

c) Destinação universal dos bens e opção preferencial pelos pobres

182 O princípio da destinação universal dos bens requer que se cuide com particular solicitude dos pobres, daqueles que se acham em posição de marginalidade e, em todo caso, das pessoas cujas condições de vida lhes impedem um crescimento adequado. A esse propósito deve ser reafirmada, em toda a sua força, a opção preferencial pelos pobres [384] . «Trata-se de uma opção, ou de uma forma especial de primado na prática da caridade cristã, testemunhada por toda a Tradição da Igreja. Ela concerne a vida de cada cristão, enquanto deve ser imitação da vida de Cristo; mas aplica-se igualmente às nossas responsabilidades sociais e, por isso, ao nosso viver e às decisões que temos de tomar, coerentemente, acerca da propriedade e do uso dos bens. Mais ainda: hoje, dada a dimensão mundial que a questão social assumiu, este amor preferencial, com as decisões que ele nos inspira, não pode deixar de abranger as imensas multidões de famintos, de mendigos, sem-teto, sem assistência médica e, sobretudo, sem esperança de um futuro melhor» [385] .

183 A miséria humana é o sinal manifesto da condição de fragilidade do homem e da sua necessidade de salvação [386] . Dela teve compaixão Cristo Salvador, que se identificou com os Seus «irmãos mais pequeninos» (Mt 25, 40.45): «Jesus Cristo reconhecerá seus eleitos pelo que tiverem feito pelos pobres. Temos o sinal da presença de Cristo quando “os pobres são evangelizados” (Mt. 11, 5)» [387] .

Jesus diz « pobres sempre os tereis convosco, mas a Mim nem sempre Me tereis» (Mt 26,11; cf. Mc 14, 7; Jo 12,1-8) não para contrapor ao serviço dos pobres a atenção que se Lhe devota. O realismo cristão, enquanto por um lado aprecia os louváveis esforços que se fazem para vencer a pobreza, por outro põe em guarda contra posições ideológicas e messianismos que alimentam a ilusão de que se possa suprimir deste mundo de maneira total o problema da pobreza. Isto acontecerá somente no Seu retorno, quando Ele estará de novo conosco para sempre. Neste interregno, os pobres ficam confiados a nós e sobre esta responsabilidade seremos julgados no fim (Cf. Mt 25, 31-46): «Nosso Senhor adverte-nos de que seremos separados dele se deixarmos de ir ao encontro das necessidades dos pobres e dos pequenos que são Seus irmãos» [388] .

184 O amor da Igreja pelos pobres inspira-se no Evangelho das bem-aventuranças, na pobreza de Jesus e na Sua atenção aos pobres. Tal amor refere-se à pobreza material e também às numerosas formas de pobreza cultural e religiosa [389] . A Igreja, «desde as suas origens, apesar das falhas de muitos de seus membros, não deixou nunca de trabalhar por aliviá-los, defendê-los e libertá-los. Ela o faz por meio de inúmeras obras de beneficência, que continuam a ser, sempre e por toda parte, indispensáveis» [390] . Inspirada no preceito evangélico: « Recebestes de graça, de graça dai » (Mt 10,8), a Igreja ensina a socorrer o próximo nas suas várias necessidades e difunde na comunidade humana inúmeras obras de misericórdia corporais e espirituais. «Dentre estes gestos de misericórdia, a esmola dada aos pobres é um dos principais testemunhos da caridade fraterna. É também uma prática de justiça que agrada a Deus» [391] , ainda que a prática da caridade não se reduza à esmola, mas implique a atenção à dimensão social e política do problema da pobreza. Sobre esta relação entre caridade e justiça o ensinamento da Igreja retorna constantemente: «Quando damos aos pobres as coisas indispensáveis, não praticamos com eles grande generosidade pessoal, mas lhes devolvemos o que é deles. Cumprimos um dever de justiça e não um ato de caridade» [392] . Os Padres Conciliares recomendam fortemente que se cumpra tal dever «para que não ofereçamos como dom de caridade aquilo que já é devido por justiça» [393] . O amor pelos os pobres é certamente «incompatível com o amor imoderado pelas riquezas ou o uso egoístico delas» [394] (Cf. Tg 5,1-6).

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